sábado, 4 de setembro de 2010

Uísque e mulher ranzinza

Eu tinha doze garrafas de uísque na minha adega e minha mulher me disse para despejar todas na pia, porque se não...

- Assim seja! Seja feita a vossa vontade, disse eu, humildemente. E comecei a desempenhar, com religiosa obediência, a minha ingrata tarefa. Tirei a rolha da primeira garrafa è despejei o seu conteúdo na pia, com exceção de um copo, que bebi. Extraí a rolha da segunda garrafa e procedi da mesma maneira, com exceção de um copo, que virei. Arranquei a rolha da terceira garrafa e despejei o uísque na pia, com exceção de um copo, que empinei. Puxei a pia da quarta rolha e despejei o copo na garrafa, que bebi. Apanhei a quinta rolha da pia, despejei o copo no resto e bebi a garrafa, por exceção. Agarrei o copo da sexta pia, puxei o uísque e bebi a garrafa, com exceção da rolha. Tirei a rolha seguinte, despejei a pia dentro da gar­rafa, arrolhei o copo e bebi por exceção.
Quando esvaziei todas as garrafas, menos duas, que escondi atrás do banheiro, para lavar a boca amanhã cedo, resolvi conferir o serviço que tinha feito, de acordo com as ordens da minha mulher, a quem não gosto de contrariar, pelo mau gênio que tem. Segurei então a casa com uma mão e com a outra contei direitinho as garrafas, rolhas, copos e pias, que eram exatamente trinta e nove. Quando a casa passou mais uma vez pela minha frente, aproveitei para recontar tudo e deu noventa e três, o que confere, já que todas as coisas no momento estão ao contrário. Para maior segurança, vou conferir tudo mais uma vez, contando todas as pias, rolhas, banheiros, copos, casas e garrafas, menos aquelas duas que escondi e acho que não vão chegar até amanhã, porque estou com uma sede louca...

- Barão de Itararé

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O Lugar do Homem na Natureza

Poucos Bichos são tão estúpidos ou covardes quanto o homem. O mais vira-lata dos cães tem sentidos mais agudos e é infinitamente mais confiável. As formigas e as abelhas são, de várias formas, mais inteligentes e engenhosas; tocam para frente seus sistemas de governo com muito menos arranca-rabos, desperdícios e imbecilidades. O leão é muito mais digno e majestoso que qualquer rei humano. O antílope é infinitamente mais rápido e gracioso. Qualquer gato doméstico comum é mais limpo. O cavalo, mesmo suado de trabalho, cheira melhor. O gorila é mais gentil com seus filhotes e mais fiel à companheira. O boi e o asno são mais produtivos e serenos. Mas, acima de tudo, o homem é deficiente em coragem, talvez a mais nobre de todas as qualidades. Seu pavor mortal não se limita a maioria dos outros animais – exceto uns poucos que ele degradou por cruzamentos artificiais –, seu pavor mortal é também daqueles da sua própria espécie – e não apenas de seus punhos e pés, mas também, e principalmente, de suas risotas.
Nenhum outro animal é tão incompetente para se adaptar ao seu próprio ambiente. A criança, quando vem ao mundo, é tão frágil que, se for deixada sozinha por aí durante alguns dias, infalivelmente morrerá, e essa enfermidade congênita, embora mais ou menos disfarçada depois, continuará até a morte. O homem adoece mais do que qualquer outro animal, tanto em seu estado selvagem quanto abrigado pela civilização. Sofre de uma variedade maior de doenças e com muito mais freqüência. Cansa-se e fere-se com mais facilidade. Praticamente todos os outros vertebrados superiores, em seu ambiente natural, vivem e retêm suas habilidades por muito mais tempo. Veja como os macacos antropóides estão bem a frente de seus primos humanos: Um orangotango casa-se aos sete ou oito anos de idade, constrói uma família de setenta a oitenta filhos, e continua tão vigoroso e sadio aos oitenta quanto um homem europeu de quarenta e cinco.
Todos os erros e incompetências do Criados chegaram ao seu clímax no homem. Como peça de um mecanismo, o homem é o pior de todos; comparados com ele, até uma salmão ou um estafilococo são máquinas sólidas e eficientes. Precisa vestir-se, proteger-se e armar-se para sobreviver. Está eternamente na posição de uma tartaruga que nasceu sem o casco... Vou chegar agora a um ponto de inquestionável superioridade natural do homem: ele tem alma. E isso que dizem separar o homem de todos os outros animais e o tornar, ainda, senhor deles. A exata natureza de tal alma vem sendo discutida há milhares de anos, mas é possível falar com autoridade a respeito de sua função. A qual seria a de fazer o homem entrar em contato direto com Deus, torná-lo consciente Dele e, principalmente, torná-lo parecido com Ele. Bem, considere o colossal fracasso desta tentativa. Se presumirmos que o homem realmente se parece com Deus, somos levados à inevitável conclusão de que Deus é um covarde, um idiota e um pilantra. E, se presumirmos que o homem não se parece com Deus, então fica claro imediatamente que a alma é uma máquina tão ineficiente quanto o coração ou as amígdalas, e que o homem poderia passar sem ela, assim como o chimpanzé, indubitavelmente, passa muito bem sem alma.
Pois este é o caso. O único efeito prático de se ter uma alma é o de que ela infla o homem com vaidades antropomórficas e antropocêntricas – em suma, com superstições arrogantes e presunçosas. Ele se empertiga e se empluma só porque tem alma – e subestima o fato de que ela não funciona. Assim, o homem é o supremo palhaço da criação, o reductio ao absurdum da natureza animada, o verme que somos convidados a defender como o favorito de Deus na Terra, com seus milhões de quadrúpedes muito mais bravos, nobres e decentes – seus soberbos leões, seus ágeis e galantes leopardos, seus imperiais elefantes, seus fiéis cães, seus corajosos ratos. O homem é o inseto a que nos imploram, depois de infinitos problemas, trabalhos e despesas, a reproduzir.

- H. L. Mencken, 1919.