quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Elucubrações filosóficas sobre a máxima “o sapo não lava o pé”.

Recebi por e-mail esse pequeno tratado filosófico e decidi postá-lo no blog, dado sua enorme importância. Infelizmente o autor que coligiu tais pérolas de sabedoria dos maiores pensadores que a humanidade já viu me é desconhecido.


Porque o sapo não lava o pé?

Parmênides de Eléia:

Como poderia o sapo lavar os pés, ó deuses, se o movimento não existe?

Heráclito de Éfeso:

Quando o sapo lava o pé, nem ele nem o pé são mais os mesmos, pois
ambos se modificam na lavagem, devido à impermanência das coisas.

Platão:

Górgias: Por Zeus, Sócrates, os sapos não lavam os seus pés porque não
gostam da água!

Sócrates: Pensemos um pouco, ó Górgias. Tu assumiste, quando há pouco
dialogava com Filebo, que o sapo é um ser vivo, correto?

Górgias: Sou forçado a admitir que sim.

Sócrates: Pois bem, e se o sapo é um ser vivo, deve forçosamente fazer
parte de uma categoria determinada de seres vivos, posto que estes
dividem-se em categorias segundo seu modo de vida e sua forma
corporal; os cavalos são diferentes das hidras e estas dos falcões, e
assim por diante, correto?

Górgias: Sim, tu estás novamente correto.

Sócrates: A característica dos sapos é a de ser habitante da água e da
terra, pois é isso que os antigos queriam dizer quando afirmaram que
este animal era anfíbio, como, aliás, Homero e Hesíodo já nos atestam.
Tu pensas que seria possível um sapo viver somente no deserto, tendo
ele necessidade de duas vidas por natureza,ó Górgias?

Górgias: Jamais ouvi qualquer notícia a respeito.

Sócrates: Pois isto se dá porque os sapos vivem nas lagoas, nos lagos
e nas poças, vistos que são animais, pertencem e uma categoria, e esta
categoria é dada segundo a característica dos sapos serem anfíbios.

Górgias: É verdade.

Sócrates: Precisando da lagoa, ó Górgias meu caro, tu achas que seria
o sapo insano o suficiente para não gostar de água?

Górgias: Não, não, não, mil vezes não, Ó Sócrates!

Sócrates: Então somos forçados a concluir que o sapo não lava o pé por
outro motivo, que não a repulsa à água

Górgias: De acordo Diógenes, o Cínico: Dane-se o sapo, eu só quero
tomar meu sol.


Aristóteles:

O [sapo] lava de acordo com sua natureza! Se imitasse, estaria fazendo
arte . Como [a arte] é digna somente do homem, é forçoso reconhecer
que o sapo lava segundo sua natureza de sapo, passando da potência ao
ato. O sapo que não lava o pé é o ser que não consegue realizar [essa]
transição da potência ao ato.

Epicuro:

O sapo deve alcançar o prazer, que é o Bem supremo, mas sem excessos.
Que lave ou não o pé, decida-se de acordo com a circunstância.

O vital é que mantenha a serenidade de espírito e fuja da dor.

Estóicos:

O sapo deve lavar seu pé de acordo com as estações do ano. No inverno,
mantenha-o sujo, que é de acordo com a natureza. No verão, lave-o
delicadamente à beira das fontes, mas sem exageros. E que pare de
comer tantas moscas, a comida só serve para o sustento do corpo.

Descartes:

Nada distingo na lavagem do pé senão figura, movimento e extensão. O
sapo é nada mais que um autômato, um mecanismo. Deve lavar seus pés
para promover a autoconservação, como um relógio precisa de corda.

Maquiavel:

A lavagem do pé deve ser exigida sem rigor excessivo, o que poderia
causar ódio ao Príncipe, mas com força tal que traga a este o respeito
e o temor dos súditos. Luís da França, ao imperar na Itália, atraído
pela ambição dos venezianos, mal agiu ao exigir que os sapos da
Lombardia tivessem os pés cortados e os lagos tomados caso não
aquiescessem à sua vontade. Como se vê, pagou integralmente o preço de
tal crueldade, pois os sapos esquecem mais facilmente um pai
assassinado que um pé cortado e uma lagoa confiscada.

Rousseau:

Os sapos nascem livres, mas em toda parte coaxam agrilhoados; são
presos, é certo, pela própria ganância dos seus semelhantes, que
impedem uns aos outros de lavarem os pés à beira da lagoa. Somente com
a alienação de cada qual de seu ramo ou touceira de capim, e mesmo de
sua própria pessoa, poder-se-á firmar um contrato justo, no qual a
liberdade do estado de natureza é substituída pela liberdade civil.

Locke:

Em primeiro lugar, faz-se mister refutar a tese de Filmer sobre a
lavagem bíblica dos pés. Se fosse assim, eu próprio seria obrigado a
lavar meus pés na lagoa, o que, sustento, não é o caso. Cada súdito
contrata com o Soberano para proteger sua propriedade, e entendo
contido nesse ideal o conceito de liberdade. Se o sapo não quer lavar
o pé, o Soberano não pode obrigá-lo, tampouco recriminá-lo pelo chulé.
E ainda afirmo: caso o Soberano queira, incorrendo em erro, obrigá-lo,
o sapo possuirá legítimo direito de resistência contra esta
reconhecida injustiça e opressão.

Filmer:

Podemos ver que, desde a época de Adão, os sapos têm lavado os pés.
Aliás, os seres, em geral, têm lavado os pés à beira da lagoa. Sendo o
sapo um descendente do sapo ancestral, é legítimo, obrigatório e
salutar que ele lave seus pés todos os dias à beira do lago ou lagoa.
Caso contrário, estará incorrendo duplamente em pecado e infração.

Kant:

O sapo age moralmente, pois, ao deixar de lavar seu pé, nada faz além
de agir segundo sua lei moral universal apriorística, que prescreve
atitudes consoantes com o que o sujeito cognoscente possa querer que
se torne uma ação universal.

Nota de Freud: Kant jamais lavou seus pés.

Hegel:

Podemos observar na lavagem do pé a manifestação da Dialética.
Observando a História, constatamos uma evolução gradativa da
ignorância absoluta do sapo – em relação à higiene – para uma
preocupação maior em relação a esta. Ao longo da evolução do Espírito
da História, vemos os sapos se aproximando cada vez mais das lagoas,
cada vez mais comprando esponjas e sabões. O que falta agora é, tão
somente, lavar o pé, coisa que, quando concluída, representará o fim
da História e o ápice do progresso.

Marx:

A lavagem do pé, enquanto atividade vital do anfíbio, encontra-se
profundamente alterada no panorama capitalista. O sapo, obviamente um
proletário, tendo que vender sua força de trabalho para um sistema de
produção baseado na detenção da propriedade privada pelas classes
dominantes, gasta em atividade produtiva alienada o tempo que deveria
ter para si próprio. Em conseqüência, a miséria domina os campos, e o
sapo não tem acesso à própria lagoa, que em tempos imemoriais fazia
parte do sistema comum de produção.

Engels: Isso mesmo.

Schopenhauer:

O sapo cujo pé vejo lavar é nada mais que uma representação, um
fenômeno, oriundo da ilusão fundamental que é o meu princípio de
razão, parte componente do principio individuationis, a que a
sabedoria vedanta chamou "véu de Maya". A Vontade, que o velho e
grande filósofo de Königsberg chamou de Coisa-em si, e que Platão
localizava no mundo das idéias, essa força cega que está por trás de
qualquer fenômeno, jamais poderá ser capturada por nós, seres
individuados, através do princípio da razão, conforme já demonstrado
por mim em uma série de trabalhos, entre os quais o que considero o
maior livro de filosofia já escrito no passado, no presente e no
futuro: "O mundo como vontade e representação".

Nietzsche:

Um espírito astucioso e camuflado, um gosto anfíbio pela dissimulação
- herança de povos mediterrâneos, certamente - uma incisividade de
espírito ainda não encontrada nas mais ermas redondezas de quaisquer
lagoas do mundo dito civilizado. Um animal que, livrando-se de
qualquer metafísica, e que, aprimorando seu instinto de realidade, com
a dolcezza audaciosa já perdida pelo europeu moderno, nega o ato
supremo, o ato cuja negação configura a mais nítida – e difícil –
fronteira entre o Sapo e aquele que está por vir, o Além- do-Sapo: a
lavagem do pé.

Foucault:

Em primeiro lugar, creio que deveríamos começar a análise do poder a
partir de suas extremidades menos visíveis, a partir dos discursos
médicos de saúde, por exemplo. Por que deveria o sapo lavar o pé? Se
analisarmos os hábitos higiênicos e sanitários da Europa no século
XII, veremos que os sapos possuíam uma menor preocupação em relação à
higiene do pé – bem como de outras áreas do corpo. Somente com a
preocupação burguesa em relação às disciplinas – domesticação do corpo
do indivíduo, sem a qual o sistema capitalista jamais seria possível –
é que surge a preocupação com a lavagem do pé. Portanto, temos o
discurso da lavagem do pé como sinal sintomático da sociedade
disciplinar.

Freud:

Um superego exacerbado pode ser a causa da falta de higiene do sapo.
Quando analisava o caso de Dora, há vinte anos, pude perceber alguns
dos traços deste problema. De fato, em meus numerosos estudos
posteriores, pude constatar que a aversão pela limpeza, do mesmo modo
que a obsessão por ela, podem constituir-se num desejo de autopunição.
A causa disso encontra-se, sem dúvida, na construção do superego a
partir das figuras perdidas dos pais, que antes representavam a fonte
de todo conteúdo moral do girino.

Jung:

O mito do sapo do deserto, presente no imaginário semita, vem a calhar
para a compreensão do fenômeno. O inconsciente coletivo do sapo, em
outras épocas desenvolvido, guardou em sua composição mais íntima a
idéia da seca, da privação, da necessidade. Por isso, mesmo quando
colocado frente a uma lagoa, em época de abundância, o sapo não lava o
pé.

Kierkegaard:

O sapo lavando o pé ou não, o que importa é a existência.

Comte:

O sapo deve lavar o pé, posto que a higiene é imprescindível. A
lavagem do pé deve ser submetida a procedimentos científicos universal
e atemporalmente válidos. Só assim poder-se-á obter um conhecimento
verdadeiro a respeito.

Weber:

A conduta do sapo só poderá ser compreendida em termos de ação social
racional orientada por valores. A crescente racionalização e o
desencantamento do mundo provocaram, no pensamento ocidental, uma
preocupação excessiva na orientação racional com relação a fins. Eis
que, portanto, parece absurdo à maior parte das pessoas o sapo não
lavar o pé. Entretanto, é fundamental que seja compreendido que, se o
sapo não lava o pé, é porque tal atitude encontra-se perfeitamente
coerente com seu sistema valorativo – a vida na lagoa.

Horkheimer e Adorno:

A cultura popular diferencia-se da cultura de massas, filha bastarda
da indústria cultural. Para a primeira, a lavagem do pé é algo ritual
e sazonal, inerente ao grupamento societário; para a segunda, a ação
impetuosa da razão instrumental, em sua irracionalidade galopante,
transforma em mercadoria e modismo a lavagem do pé, exterminando
antigas tradições e obrigando os sapos a um procedimento diário de
higienização.

Gramsci:

O sapo, e além dele, todos os sapos, só poderão lavar seus pés a
partir do momento em que, devido à ação dos intelectuais orgânicos,
uma consciência coletiva principiar a se desenvolver gradativamente na
classe batráquia. Consciência de sua importância e função social no
modo de produção da vida. Com a guerra de posições - representada pela
progressiva formação, através do aparato ideológico da sociedade
civil, de consensos favoráveis– serão criadas possibilidades para uma
nova hegemonia, dessa vez sob a direção das classes anteriormente
subordinadas.

Bobbio:

Existem três tipos de teoria sobre o sapo não lavar o pé. O primeiro
tipo aceita a não-lavagem do pé como natural, nada existindo a
reprovar nesse ato. O segundo tipo acredita que ela seja moral ou
axiologicamente errada. A terceira espécie limita-se a descrever o
fenômeno, procurando uma certa neutralidade.

Olavo de Carvalho:

O sapo não lava o pé. Não lava porque não quer. Ele mora lá na lagoa,
não lava o pé porque não quer e ainda culpa o sistema, quando a culpa
é da PREGUIÇA. Este tipo de atitude é que infesta o Brasil e o Mundo,
um tipo de atitude oriundo de uma complexa conspiração moscovita
contra a livre-iniciativa e os valores humanos da educação e da
higiene!

sábado, 4 de setembro de 2010

Uísque e mulher ranzinza

Eu tinha doze garrafas de uísque na minha adega e minha mulher me disse para despejar todas na pia, porque se não...

- Assim seja! Seja feita a vossa vontade, disse eu, humildemente. E comecei a desempenhar, com religiosa obediência, a minha ingrata tarefa. Tirei a rolha da primeira garrafa è despejei o seu conteúdo na pia, com exceção de um copo, que bebi. Extraí a rolha da segunda garrafa e procedi da mesma maneira, com exceção de um copo, que virei. Arranquei a rolha da terceira garrafa e despejei o uísque na pia, com exceção de um copo, que empinei. Puxei a pia da quarta rolha e despejei o copo na garrafa, que bebi. Apanhei a quinta rolha da pia, despejei o copo no resto e bebi a garrafa, por exceção. Agarrei o copo da sexta pia, puxei o uísque e bebi a garrafa, com exceção da rolha. Tirei a rolha seguinte, despejei a pia dentro da gar­rafa, arrolhei o copo e bebi por exceção.
Quando esvaziei todas as garrafas, menos duas, que escondi atrás do banheiro, para lavar a boca amanhã cedo, resolvi conferir o serviço que tinha feito, de acordo com as ordens da minha mulher, a quem não gosto de contrariar, pelo mau gênio que tem. Segurei então a casa com uma mão e com a outra contei direitinho as garrafas, rolhas, copos e pias, que eram exatamente trinta e nove. Quando a casa passou mais uma vez pela minha frente, aproveitei para recontar tudo e deu noventa e três, o que confere, já que todas as coisas no momento estão ao contrário. Para maior segurança, vou conferir tudo mais uma vez, contando todas as pias, rolhas, banheiros, copos, casas e garrafas, menos aquelas duas que escondi e acho que não vão chegar até amanhã, porque estou com uma sede louca...

- Barão de Itararé

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O Lugar do Homem na Natureza

Poucos Bichos são tão estúpidos ou covardes quanto o homem. O mais vira-lata dos cães tem sentidos mais agudos e é infinitamente mais confiável. As formigas e as abelhas são, de várias formas, mais inteligentes e engenhosas; tocam para frente seus sistemas de governo com muito menos arranca-rabos, desperdícios e imbecilidades. O leão é muito mais digno e majestoso que qualquer rei humano. O antílope é infinitamente mais rápido e gracioso. Qualquer gato doméstico comum é mais limpo. O cavalo, mesmo suado de trabalho, cheira melhor. O gorila é mais gentil com seus filhotes e mais fiel à companheira. O boi e o asno são mais produtivos e serenos. Mas, acima de tudo, o homem é deficiente em coragem, talvez a mais nobre de todas as qualidades. Seu pavor mortal não se limita a maioria dos outros animais – exceto uns poucos que ele degradou por cruzamentos artificiais –, seu pavor mortal é também daqueles da sua própria espécie – e não apenas de seus punhos e pés, mas também, e principalmente, de suas risotas.
Nenhum outro animal é tão incompetente para se adaptar ao seu próprio ambiente. A criança, quando vem ao mundo, é tão frágil que, se for deixada sozinha por aí durante alguns dias, infalivelmente morrerá, e essa enfermidade congênita, embora mais ou menos disfarçada depois, continuará até a morte. O homem adoece mais do que qualquer outro animal, tanto em seu estado selvagem quanto abrigado pela civilização. Sofre de uma variedade maior de doenças e com muito mais freqüência. Cansa-se e fere-se com mais facilidade. Praticamente todos os outros vertebrados superiores, em seu ambiente natural, vivem e retêm suas habilidades por muito mais tempo. Veja como os macacos antropóides estão bem a frente de seus primos humanos: Um orangotango casa-se aos sete ou oito anos de idade, constrói uma família de setenta a oitenta filhos, e continua tão vigoroso e sadio aos oitenta quanto um homem europeu de quarenta e cinco.
Todos os erros e incompetências do Criados chegaram ao seu clímax no homem. Como peça de um mecanismo, o homem é o pior de todos; comparados com ele, até uma salmão ou um estafilococo são máquinas sólidas e eficientes. Precisa vestir-se, proteger-se e armar-se para sobreviver. Está eternamente na posição de uma tartaruga que nasceu sem o casco... Vou chegar agora a um ponto de inquestionável superioridade natural do homem: ele tem alma. E isso que dizem separar o homem de todos os outros animais e o tornar, ainda, senhor deles. A exata natureza de tal alma vem sendo discutida há milhares de anos, mas é possível falar com autoridade a respeito de sua função. A qual seria a de fazer o homem entrar em contato direto com Deus, torná-lo consciente Dele e, principalmente, torná-lo parecido com Ele. Bem, considere o colossal fracasso desta tentativa. Se presumirmos que o homem realmente se parece com Deus, somos levados à inevitável conclusão de que Deus é um covarde, um idiota e um pilantra. E, se presumirmos que o homem não se parece com Deus, então fica claro imediatamente que a alma é uma máquina tão ineficiente quanto o coração ou as amígdalas, e que o homem poderia passar sem ela, assim como o chimpanzé, indubitavelmente, passa muito bem sem alma.
Pois este é o caso. O único efeito prático de se ter uma alma é o de que ela infla o homem com vaidades antropomórficas e antropocêntricas – em suma, com superstições arrogantes e presunçosas. Ele se empertiga e se empluma só porque tem alma – e subestima o fato de que ela não funciona. Assim, o homem é o supremo palhaço da criação, o reductio ao absurdum da natureza animada, o verme que somos convidados a defender como o favorito de Deus na Terra, com seus milhões de quadrúpedes muito mais bravos, nobres e decentes – seus soberbos leões, seus ágeis e galantes leopardos, seus imperiais elefantes, seus fiéis cães, seus corajosos ratos. O homem é o inseto a que nos imploram, depois de infinitos problemas, trabalhos e despesas, a reproduzir.

- H. L. Mencken, 1919.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

SIM, FAREI...; e hora a hora passa o dia...

I

SIM, FAREI...; e hora a hora passa o dia...
Farei, e dia a dia passa o mês...
E eu, cheio sempre só do que faria,
Vejo que o que faria se não fez,
De mim, mesmo em inútil nostalgia.

Farei, Farei... Anos os meses são
Quando são muitos-anos, toda a vida,
Tudo... E sempre a mesma sensação
Que qualquer cousa há-de ser conseguida,
E sempre quieto o pé e inerte a mão...

Farei, farei, farei... Sim, qualquer hora
Talvez me traga o esforço e a vitória,
Mas será só se mos trouxer de fora.
Quis tudo – a paz, a ilusão, a glória...
Que obscuro absurdo na minha alma chora?

II

Farei talvez um dia um poema meu,
Não qualquer cousa que, se eu a analiso,
É só a teia que se em mim teceu
De tanto alheio e anônimo improviso
Que ou a mim ou a eles esqueceu...

Um poema próprio, em que me vá o ser,
Em que eu diga o que sinto e o que sou,
Sem pensar, sem fingir e sem querer,
Como um lugar exacto, o onde estou,
E onde me possam, como eu, me ver.

Ah, mas quem pode ser quem é? Quem sabe
Ter a alma que tem? Quem é quem é?
Sombras de nós, só reflectir nos cabe.
Mas reflectir, ramos irreais, o quê?
Talvez só o vento que nos fecha e abre.

III

Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre das falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

Pessoa, Fernando. Obra Poética. Editora: Nova Aguilar, 1986.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Manuel Bandeira - Alguns Poemas

Poema de Finados

Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho em mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.

Vou-me embora pra Pasárgada


Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:
- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...

O Último Poema

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

*BANDEIRA, Manuel. Libertinagem e Estrela da Manhã. Editora Nova Fronteira

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Resenha do conto - A Substância Sobrenatural dos Sonhos

É com muito prazer que faço essa resenha para o conto do meu queridíssimo amigo Caio Vasques. Caio é um jovem escritor de apenas 18 anos, nascido no dia 16/12/1990, na cidade de São José de Pádua, interior de Minas Gerais. Tem pouca coisa escrita ainda, entre contos e poesia, mas de uma intensidade e profundidade impar.

Seu conto, segundo ele próprio relatou, foi escrito em circunstâncias parecidas com a vivida pelo personagem - numa angustiosa noite de insônia. De fácil leitura, o conto nos lança nos meandros da mente perturbada de um jovem rapaz que se apavora com o profundo silêncio que o cerca e, ao mesmo tempo, idéias começam a fervilhar em sua mente com tal intensidade que, contrastando com a calma exterior, levam-no a beira da loucura.

A conto demonstra o transbordamento criativo de uma mente que não consegue extravasar essa mesma criatividade, levando-a assim a uma angústia extrema. Quem não passou por isso quando acorda sem sono e, ainda deitado na cama, pensando, tem aquela idéia que lhe parece genial?! A angustia que dá até colocarmos isso pra fora... do contrário não voltaríamos a dormir.

O conto começa dessa forma, com uma idéia para um poema, e que é justamente o poema usado no conto. Caio conta que logo depois, na mesma noite de insônia, teve a idéia para o conto e anexou os poemas a este. Os poemas em si não são grande coisa (separados do conto seriam apenas a descarga catártica de um desassossego que não o deixava dormir), porém, somados ao conto, tomam nova magnitude. Vale a pena ser lido.

Com consentimento de Caio, estou disponibilizando o conto para download:

download

Confiram!

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Motivos para beber (parte2)

NÃO DIGAS que, sepulto, já não sente
O corpo, ou que a alma vive eternamente.
Que sabes tu do que não sabes? Bebe!
Só tens de certo o nada do presente.

***

Ninguém suporta o peso mau dos dias
Salvo por interpostas alegrias.
Bebe, que assim serás o intervalo
Entre o que criarás e o que não crias.

(...)

Bebe. Se escutas, ouves só o ruído
Que ervas ou folhas trazem ao ouvido.
É o vento, que é nada. Assim é o mundo:
Um movimento regular de olvido.

(...)

Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.

***

TUDO FOI DITO antes que se dissesse.
O vento aflora vagamente a messe,
E deixa-a porque breve se apagou.
Assim é tudo-nada. Bebe e esquece.

Na eterna sesta de não desejar
Deixa-te, bêbado e asceta, estar.
Lega o amor aos outros, que a beleza
Foi feita só para se contemplar.