segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Motivos para beber:

O tédio de Khayyam não é o tédio de quem não sabe o que faça, porque na verdade nada pode ou sabe fazer. Esse é o tédio dos que nasceram mortos, o dos que legitimamente se orientam para a morfina ou a cocaína. É o tédio de quem pensou claramente e viu que tudo era obscuro, de quem mediu todas as religiões e todas as filosofias e depois disse, como Salomão: “Vi que tudo era vaidade e aflições de ânimo”, ou como, ao despedir-se do poder e do mundo, outro rei, que era imperador, nele, Septímio Severo: “Omnia fui, nihil...” “fui tudo; nada vale a pena”.
A vida, disse Tarde¹, é a busca do impossível através do inútil; assim diria, se o houvesse dito, Omar Khayyam.
Daí a insistência do persa no uso do vinho. Bebe! Bebe! é toda a filosofia prática. Não é o beber da alegria, que bebe porque mais se alegre, porque mais seja ela mesma. Não é o beber do desespero, que bebe para esquecer, para ser menos ele mesmo. O vinho junta a alegria a acção e o amor; e há que reparar que não há em Khayyam nota alguma de energia, nenhuma frase de amor. Aquela Sàki, cuja figura grácil entrevista surge (mas surge pouco) nos rubaiyat, não é senão a “rapariga que serve o vinho”. O poeta é grato à sua esbelteza como o fora à esbelteza da ânfora, onde o vinho se contivesse.
A alegria fala, do vinho, como o Deão Aldrich²:

A gente tem, a meu ver,
Cinco razões para beber:
Um brinde, um amigo, ou então
Sede, ou poder vi-la ter,
Ou qualquer outra razão.*

A filosofia prática de Khayyam reduz-se pois a um epicurismo suave, esbatido até ao mínimo do desejo de prazer. Basta-lhe ver rosas e beber vinho. Uma brisa leve, uma conversa sem intuito nem propósito, um púncaro de vinho, flores, em isso, e em não mais do que isso, põe o sábio persa o seu desejo máximo. O amor agita e cansa, a acção dispersa e falha, ninguém sabe saber e pensar embacia tudo. Mais vale pois cessar em nós de desejar ou de esperar, de ter pretensão fútil de explicar o mundo, ou o propósito estulto de o emendar ou governar. Tudo é nada, ou, como se diz na Antologia Grega, “tudo vem da sem-razão”, e é um grego³, e portanto um racional, que o diz.

¹ Gabriel Tarde (1843-1904), sociólogo e criminalista francês.
² Henry Aldrich (1647-1710), Deão de Christ Church, em Oxford, era conhecido sobretudo com teólogo e humanista.
³ Glícon.

* Uma das tradução de Pessoa, a outra é:

Creio que há para beber
Cinco razões, e que são:
Um brinde, um amigo, haver
Sede, ou poder vi-la a ter,
Ou qualquer outra razão.

Fragmento do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa

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